desde 2012, no entanto, só agora tomei conhecimento dele.
E, coincidentemente, guarda pavorosa relação com o livro
à sorteio aí embaixo, que é uma obra de Kafka.
A audiência descrita pelo Desembargador Paulo Rangel pode
ser facilmente confundida com uma visão kafkiana, entretanto,
faz parte da realidade brasileira. Resta saber até quando esta
semelhança vai perdurar.
O que nos deixa esperançoso é constatar que, mesmo não sendo
muita coisa em proporção - talvez 1% - há gente de bom senso
no Judiciário brasileiro!
A PIOR AUDIÊNCIA DA MINHA VIDA
Desembargador Paulo Rangel
"A minha carreira de Promotor de Justiça foi pautada sempre
pelo princípio da importância (inventei agora esse princípio),
isto é, priorizava aquilo que realmente era significante diante da
quantidade de fatos graves que ocorriam na Comarca em que
trabalhava. Até porque eu era o único promotor da cidade e só
havia um único juiz. Se nós fôssemos nos preocupar com furto
de galinha do vizinho; briga no botequim de bêbado sem lesão
grave e noivo que largou a noiva na porta da igreja nós não
iríamos dar conta de tudo de mais importante que havia para
fazer e como havia (crimes violentos, graves, como estupros,
homicídios, roubos, etc).
Era simples. Não há outro meio de você conseguir fazer justiça
se você não priorizar aquilo que, efetivamente, interessa à
sociedade. Talvez esteja aí um dos males do Judiciário quando
se trata de "emperramento da máquina judiciária". Pois bem.
O Procurador Geral de Justiça (Chefe do Ministério Público) da
época me ligou e pediu para eu colaborar com uma colega da
comarca vizinha que estava enrolada com os processos e
audiências dela. Lá fui eu prestar solidariedade à colega.
Cheguei, me identifiquei a ela (não a conhecia) e combinamos
que eu ficaria com os processos criminais e ela faria as
audiências e os processos cíveis. Foi quando ela pediu para,
naquele dia, eu fazer as audiências, aproveitando que já estava
ali. Tudo bem. Fui à sala de audiências e me sentei no lugar
reservado aos membros do Ministério Público: ao lado direito
do juiz.
E eis que veio a primeira audiência do dia: um crime de ato
obsceno cuja lei diz:
Ato obsceno
Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou
exposto ao público:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O detalhe era: qual foi o ato obsceno que o cidadão praticou
para estar ali, sentado no banco dos réus? Para que o Estado
movimentasse toda a sua estrutura burocrática para fazer valer
a lei? Para que todo aquele dinheiro gasto com ar condicionado,
luz, papel, salário do juiz, do promotor, do defensor, dos policiais
que estão de plantão, dos oficiais de justiça e demais
funcionários justificasse aquela audiência? Ele, literalmente,
cometeu uma ventosidade intestinal em local público, ou em
palavras mais populares, soltou um pum, dentro de uma agência
bancária e o guarda de segurança que estava lá para tomar conta
do patrimônio da empresa, incomodado, deu voz de prisão em
flagrante ao cliente peidão porque entendeu que ele fez aquilo
como forma de deboche da figura do segurança, de sua
autoridade, ou seja, lá estava eu, assoberbado de trabalho na
minha comarca, trabalhando com o princípio inventado agora da
importância, tendo que fazer audiência por causa de um peidão
e de um guarda q ue não tinha o que fazer. E mais grave ainda:
de uma promotora e um juiz que acharam que isso fosse algo
relevante que pudesse autorizar o Poder Judiciário a gastar
rios de dinheiro com um processo para que aquele peidão,
quando muito mal educado, pudesse ser punido nas "penas
da lei".
Ponderei com o juiz que aquilo não seria um problema do
Direito Penal, mas sim, quando muito, de saúde, de educação,
de urbanidade, enfim? Ponderei, ponderei, mas bom senso não
se compra na esquina, nem na padaria, não é mesmo? Não se
aprende na faculdade. Ou você tem, ou não tem. E nem o juiz,
nem a promotora tinham ao permitir que um pum se
transformasse num litígio a ser resolvido pelo Poder Judiciário.
Imagina se todo pum do mundo se transformasse num
processo? O cheiro dos fóruns seria insuportável.
O problema é que a audiência foi feita e eu tive que ficar ali
ouvindo tudo aquilo que, óbvio, passou a ser engraçado. Já
que ali estava, eu iria me divertir. Aprendi a me divertir com as
coisas que não tem mais jeito. Aquela era uma delas. Afinal o
que não tem remédio, remediado está.
O réu era um homem simples, humilde, mas do tipo forte, do
campo, mas com idade avançada, aproximadamente, uns 70
anos.
Eis a audiência:
Juiz - Consta aqui da denúncia oferecida pelo Ministério
Público que o senhor no dia x, do mês e ano tal, a tantas horas,
no bairro h, dentro da agência bancária Y, o senhor, com
vontade livre e consciente de ultrajar o pudor público, praticou
ventosidade intestinal, depois de olhar para o guarda de forma
debochada, causando odor insuportável a todas as pessoas
daquela agência bancária, fato, que, por si só, impediu que
pessoas pudessem ficar na fila, passando o senhor a ser o
primeiro da fila.
Esses fatos são verdadeiros?
Réu - Não entendi essa parte da ventosidade?. o que mesmo?
Juiz - Ventosidade intestinal.
Réu - Ah sim, ventosidade intestinal. Então, essa parte é que eu
queria que o senhor me explicasse direitinho.
Juiz - Quem tem que me explicar aqui é o senhor que é réu.
Não eu. Eu cobro explicações. E então.. São verdadeiros ou
não os fatos?
O juiz se sentiu ameaçado em sua autoridade. Como se o réu
estivesse desafiando o juiz e mandando ele se explicar. Não
percebeu que, em verdade, o réu não estava entendendo nada
do que ele estava dizendo.
Réu - O guarda estava lá, eu estava na agência, me lembro que
ninguém mais ficou na fila, mas eu não roubei ventosidade de
ninguém não senhor. Eu sou um homem honesto e trabalhador,
doutor juiz "meretrício".
Na altura da audiência eu já estava rindo por dentro porque era
claro e óbvio que o homem por ser um homem simples ele não
sabia o que era ventosidade intestinal e o juiz por pertencer a
outra camada da sociedade não entendia algo óbvio: para o
povo o que ele chamava de ventosidade intestinal aquele
homem simples do povo chama de PEIDO. E mais: o juiz se
ofendeu de ser chamado de meretrício. E continuou a
audiência.
Juiz - Em primeiro lugar, eu não sou meretrício, mas sim
meritíssimo. Em segundo, ninguém está dizendo que o senhor
roubou no banco, mas que soltou uma ventosidade intestinal.
O senhor está me entendendo?
Réu - Ahh, agora sim. Entendi sim. Pensei que o senhor
estivesse me chamando de ladrão. Nunca roubei nada de
ninguém. Sou trabalhador.
E puxou do bolso uma carteira de trabalho velha e amassada
para fazer prova de trabalho.
Juiz - E então, são verdadeiros ou não esses fatos.
Réu - Quais fatos?
O juiz nervoso como que perdendo a paciência e alterando a
voz repetiu.
Juiz - Esses que eu acabei de narrar para o senhor. O senhor
não está me ouvindo?
Réu - To ouvindo sim, mas o senhor pode repetir, por favor.
Eu não prestei bem atenção.
O juiz, visivelmente irritado, repetiu a leitura da denúncia e
insistiu na tal da ventosidade intestinal, mas o réu não
alcançava o que ele queria dizer. Resolvi ajudar, embora não
devesse, pois não fui eu quem ofereci aquela denúncia
estapafúrdia e descabida. Típica de quem não tinha o que fazer.
EU - Excelência, pela ordem. Permite uma observação?
O juiz educado, do tipo que soltou pipa no ventilador de casa
e jogou bola de gude no tapete persa do seu apartamento,
permitiu, prontamente, minha manifestação.
Juiz - Pois não, doutor promotor. Pode falar. À vontade.
Eu - É só para dizer para o réu que ventosidade intestinal é um
peido. Ele não esta entendendo o significado da palavra técnica
daquilo que todos nós fazemos: soltar um pum. É disso que a
promotora que fez essa denúncia está acusando o senhor.
O juiz ficou constrangido com minhas palavras diretas e
objetivas, mas deu aquele riso de canto de boca e reiterou
o que eu disse e perguntou, de novo, ao réu se tudo aquilo
era verdade e eis que veio a confissão.
Réu - Ahhh, agora sim que eu entendi o que o senhor
"meretrício" quer dizer.
O juiz o interrompeu e corrigiu na hora.
Juiz - Meretrício não, meritíssimo.
Pensei comigo: o cara não sabe o que é um peido vai saber
o que é um adjetivo (meritíssimo)? Não dá. É muita falta de
sensibilidade, mas vamos fazer a audiência. Vamos ver onde
isso vai parar. E continuou o juiz.
Juiz - Muito bem. Agora que o doutor Promotor já explicou para
o senhor de que o senhor é acusado o que o senhor tem para
me dizer sobre esses fatos? São verdadeiros ou não?
Juiz adora esse negócio de verdade real. Ele quer porque quer
saber da verdade, sei lá do que.
Réu - Ué, só porque eu soltei um pum o senhor quer me
condenar? Vai dizer que o meretrício nunca peidou? Que o
Promotor nunca soltou um pum? Que a dona moça aí do seu
lado nunca peidou? (ele se referia a secretária do juiz que
naquela altura já estava peidando de tanto rir como todos
os presentes à audiência).
O juiz, constrangido, pediu a ele que o respeitasse e as
pessoas que ali estavam, mas ele insistiu em confessar seu
crime.
Réu - Quando eu tentei entrar no banco o segurança pediu para
eu abrir minha bolsa quando a porta giratória travou, eu abri.
A porta continuou travada e ele pediu para eu levantar a minha
blusa, eu levantei. A porta continuou travada. Ele pediu para eu
tirar os sapatos eu tirei, mas a porta continuou travada. Aí ele
pediu para eu tirar o cinto da calça, eu tirei, mas a porta não
abriu. Por último, ele pediu para eu tirar todos os metais que
tinha no bolso e a porta continuou não abrindo. O gerente veio
e disse que ele podia abrir a porta, mas que ele me revistasse.
Eu não sou bandido. Protestei e eles disseram que eu só
entraria na agência se fosse revistado e aí eu fingi que deixaria
só para poder entrar. Quando ele veio botar a mão em cima de
mim me revistando, passando a mão pelo meu corpo, eu fiquei
nervoso e, sem querer, soltei um pum na cara dele e ele ficou
possesso de raiva e me prendeu. Por isso que estou aqui, mas
não fiz de propósito e sim de nervoso. Passei mal com todo
aquele constrangimento das pessoas ficarem me olhando
como seu eu fosse um bandido e eu não sou. Sou um
trabalhador. Peidão sim, mas trabalhador e honesto.
O réu prestou o depoimento constrangido e emocionado e o
juiz encerrou o interrogatório. Olhei para o defensor público e
percebi que o réu foi muito bem orientado. Tipo: "assume o que
fez e joga o peido no ventilador. Conta toda a verdade". O juiz
quis passar a oitiva das testemunhas de acusação e eu alertei
que estava satisfeito com a prova produzida até então.
Em outras palavras: eu não iria ficar ali sentado ouvindo
testemunhas falando sobre um cara peidão e um segurança
maluco que não tinha o que fazer junto com um gerente
despreparado que gosta de constranger os clientes e um juiz
que gosta de ouvir sobre o peido alheio. Eu tinha mais o que
fazer. Aliás, eu estava até com vontade de soltar um pum, mas
precisava ir ao banheiro porque meu pum as vezes pesa e aí já
viu, né?
No fundo eu já estava me solidarizando com o pum do réu,
tamanho foi o abuso do segurança e do gerente e pior: por
colocarem no banco dos réus um homem simples porque
praticou uma ventosidade intestinal.
É o cúmulo da falta do que fazer e da burocracia forense, além
da distorção do Direito Penal sendo usado como instrumento
de coação moral. Nunca imaginei fazer uma audiência por
causa de uma, como disse a denúncia, ventosidade intestinal.
Até pum neste País está sendo tratado como crime com tanto
bandido, corrupto, ladrão andando pelas ruas o judiciário parou
para julgar um pum.
Resultado: pedi a absolvição do réu alegando que o fato não
era crime, sob pena de termos que ser todos, processados,
criminalmente, neste País, inclusive, o juiz que recebeu a
denúncia e a promotora que a fez. O juiz, constrangido,
absolveu o réu, mas ainda quis fazer discurso chamando a
atenção dele, dizendo que não fazia aquilo em público, ou seja,
ele é o único ser humano que está nas ruas e quando quer
peidar vai em casa rápido, peida e volta para audiência, por
exemplo.
É um cara politicamente correto. É o tipo do peidão covarde, ou
seja, o que tem medo de peidar. Só peida no banheiro e se não
tem banheiro ele se contorce, engole o peido, cruza as
perninhas e continua a fazer o que estava fazendo como se
nada tivesse acontecido. Afinal, juiz é juiz.
Moral da história: perdemos 3 horas do dia com um processo
por causa de um peido. Se contar isso na Inglaterra, com
certeza, a Rainha jamais irá acreditar porque ela também,
mesmo sendo Rainha? Você sabe."
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2012.
Paulo Rangel, Desembargador do Tribunal de Justica
do Rio de Janeiro.
Abraço do tesco.
4 comentários:
Oi Tesco, só você pra me fazer rir.
Ainda bem que moro numa cidade pequena e já havia avisado. Se me barrarem na porta, além de tirar minha gorda conta de lá, fico pelada dentro da roleta. Imagina, com esse "corpão" lindo irão me chamar para fazer fotos na revista.kkkkkkkkkk. Esqueceu que no Brasil tudo pode????
Beijos
Dorli
Era só o que faltava... Bandidos, criminosos, pedófilos e etc, soltos nas ruas e o sujeito, coitado, só porque...bem, podemos esperar tudo dessa nossa Justiça.
Mas, deu pra rir, viu tesco?
Kisojn!
Olá, tesco!
Que coisa mais absurda! Isto, foi real. Nossa!
Coitadinhos dos intestinos k até precisam "respirar".
Abraços.
Tesco, esse fato é verdadeiro?
Nesse país tudo pode mesmo!
Imagina mesmo isso sendo contado noutros países...
Depois, querem que levemos a justiça a sério!
kkkkk
hiscla
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