Leio “O feiticeiro e a sombra”, de Ursula
K. Le Guin,
afamada
escritora de ficção científica. A ficção aqui não é
científica, evidentemente, ela escreve também na área da
fantasia.
Não
é gênero de que eu seja adepto, longe de mim Harry
Potters,
Nárnias e Senhores do Anel, mas sempre agradável
é uma prosa
bem contada. Por isso encaro o ciclo “Terramar”
da Ursula, ela
escreve bem e os livros não são longos.
Selecionei do capítulo 2, “Sombra”, um trecho que achei
interessante,
pois nos traz bons ensinamentos, desde que
se olhe
convenientemente. Convém ressaltar que o
feiticeiro
do título não é Óguion, como pode parecer à
primeira
vista, mas Gued, conhecido como Gavião, ainda
em
fase de aprendizado.
Óguion, o mestre, e Gued, o discípulo,
caminham para a
residência daquele, onde Gued será aprendiz por
algum
tempo. O mestre, que é de pouco falar, dá alguma
instrução
preliminar:
“— Tu queres lançar feitiços — prosseguiu finalmente
Óguion,
sempre caminhando. — Já tiraste demasiada água desse
poço.
Espera. Chegar a homem adulto requer paciência.
Chegar a
mestre requer nove vezes mais paciência. Que erva é
aquela,
à beira do caminho?
— Centáurea-azul.
— E
aquela?
— Não
sei.
— Quadrifólio
é o nome que lhe dão.
Óguion
estacara, com a ponteira de cobre do seu bastão
junto
à pequena erva, de modo que Gued olhou a planta de
perto,
arrancou-lhe uma vagem seca e, por fim, já que
Óguion
se remetera ao silêncio, perguntou:
— E
que utilidade tem, Mestre?
— Que
eu saiba, nenhuma.”
Isso
até parece gozação, mas, algumas centenas de metros
adiante,
o mestre esclarece:
“— Quando conheceres o quadrifólio
em todas as suas
estações, a sua raiz, folha e flores, pela vista,
pelo aroma
e pela semente, então poderás aprender o seu
nome
-verdadeiro, conhecendo o seu ser. E esse é bem mais que
a
sua utilidade. Ao fim e ao cabo, que utilidade tens tu?
Ou eu? A
Montanha de Gont é útil, ou o Alto-Mar?
Óguion
continuou a caminhar durante cerca de um
quilômetro e lá acabou
por voltar a falar.
— Para
ouvir, temos de estar em silêncio.”
Aí
está bem exposta a questão da utilidade das coisas, o
que
não está bem explícito é a resposta a essa questão.
Sim, tem
explicação sim. Ser pragmático, levar em conta
a finalidade de
cada coisa, é bom, há porém a questão da
limitação do
conhecimento humano. O homem não sabe
a
finalidade de todas as coisas, principalmente, quando
não toma
em consideração o lado espiritual.
Cada
coisa que existe tem sua finalidade, o acaso não
regula
nada. O que não quer dizer que, já que há uma razão,
forçosamente
a conheçamos. Muito longe estamos de tal
situação,
mas para isso temos o raciocínio e temos a
ciência, quer dizer, a
vontade de conhecer as causas.
Mais
adiante, na mesma caminhada, o mestre discorre
sobre a
responsabilidade na “Arte do Feiticeiro” (Magia?).
Ele
ressalta que tudo que se diz ou que se faz, traz consigo
uma
carga de consequências. Observem o que ele diz:
“Nunca
pensaste que o perigo rodeia forçosamente o poder,
tal como a sombra
rodeia a luz?
A feitiçaria não é um jogo a que nos entreguemos
pelo
prazer
ou pelos louvores. Cada palavra e cada ato da nossa
Arte
é dita e é feito ou para o bem ou para o mal.
Antes de falares
ou agires, tens de saber qual o preço a
pagar!”
Aqui fica claro que nada é realizado gratuitamente, as
consequências advindas a partir de determinado ato, serão
seu
pagamento ou, em muitos casos, a falta do pagamento.
Como
se dizia antigamente “O universo abomina o vácuo”,
ou seja,
a retirada de uma peça do seu lugar acarreta uma
imediata
reposição por outras peças. E vice-versa, inserção
de
alguma coisa em um lugar leva ao deslocamento de
outras.
-
Mas eu não sou feiticeiro nem aprendiz, o que é que eu
tenho
a ver com esse “regulamento”?
Ele fala de feitiçaria,
mas isso tudo pode ser estendido para
a
vida em geral, As mesmas regras se aplicam à vida e não
há
como escapar disto, estamos imersos nela e, afinal, a
vida
é a maior magia que se pode conhecer.
Abraço
do tesco.