TRADUTOR

English French German Spain Italian Dutch Russian Portuguese Japanese Korean Arabic Chinese Simplified

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O DRAMA DE SEMPRE


Li recentemente a primeira edição, organizada em 1984
por Álvaro Salema, da “Antologia do conto português
contemporâneo”, reunindo autores portugueses e com
uma abrangência de 60 anos. Portanto, para nós hoje,
30 anos depois, alguns dos contos já estão bem distantes.

Não é o caso de “Balada”, publicado em 1948, no livro
“Serranos” do escritor e jornalista Mário Braga (1921-),
pois trata uma temática ainda muito atual: A diferença
de recursos entre pobres e ricos.


É um conto dramático, bem contado, e com um elemento
cômico ao final, o que não lhe altera o caráter dramático,
pelo contrário, reforça-o.


E como vocês, normalmente, não estão por aí lendo alguma
antologia de contos portugueses, e como, dificilmente,irão
se deparar com este mesmo conto, trago esta boa prosa à
guisa de post. (Guisa é uma boa, né? A gente muito lê, mas
nunca usa).

BALADA
Mário Braga

"O lugar de Sequeiros planta-se no alto da Serra de Queiró,
arriba de Zebrais.


É terra de pstores, encravada entre penedos. Os homens
vivem ali, esquecidos dos outros homens, a cuidar dos
rebanhos e a ver crescer os pastos. O gado é a vida da gente
de Sequeiros; a lã, o seu trigo e o seu pão. Só nos escassos
meses de veraneio a terra fica nua e pode gear. No inverno,
vestida de branco, ela adormece. Pastores e rebanhos
pernoitam no quente dos currais, e o dia é da serra, na pista

do verde. O inverno traz a fome a homens e animais.

Semanas e semanas o gado no coberto, por culpa dos
nevões, sem poder emigrar para o vale. Depois, morre a
erva, já pouca, queimada pelo gelo, seca o leite das fêmeas,
e cresce a fome dos pastores.


Manel Libório era homem rico, senhor de terras e de muitas
cabeças. Melo Bichão era pastor velho e pobre, a quem já
ninguém confiava gado. Manel Libório vivia em casa de bom
aconchego, rodeado de família. Melo Bichão dormia quase
na rua e tinha apenas um filho amalucado. Manel Libório e
o seu rebanho passavam vida farta. Melo Bichão, o filho, e
as suas sete ovelhas curtiam fome como danados. E ambos
eram criaturas de Deus, naturais de Sequeiros.


Nesse ano, o inverno chegou cedo. Duas semanas de nevão
cobriram a serra de branco e queimaram o pastio. Foi então
que começou a tragédia do pastor velho e cansado, pai de

um filho doido e dono de sete ovelhas famintas.

Dias e noites a fio baliram os animais com fome. Dias e
noites, sem dormir, escutou Melo Bichão o triste balir das
ovelhas. E sofria no seu amor por elas:
«Cala-te, Marrafa, cala-te, Nina...»

Mas o céu não parava de abrir se em neve, e a neve em frio,
e o frio a picar a carne velha de Melo Bichão. Choramingava
o filho maluco, baliam os animais famintos na verde saudade
do pasto. E mais sofria o pastor velho com a fome das sete
ovelhas.


A casa grande de Manel Libório quase se encostava à toca
negra de Melo Bichão. Saía-se a porta, dobrava-se a esquina,
e ficava-se de caras para o aprisco.

Um aprisco como um palácio, amplo e coberto, onde as
ovelhas felizes do vizinho rico baliam alegres da fartura,
que Manel Libório tinha pasto seu e muitos braços para
lho juntarem em casa.

Definhavam as ovelhas do pastor pobre: engordavam a
recato as do pastor rico.

E mais sofria Melo Bichão: «Cala-te, Negra, cala-te, Nina...»
A neve não parava no correr das semanas. Gemia o filho
doido de Melo Bichão. Gemia, gemia. E secava-se o leite das
fêmeas, morrendo os anhos.

E uma ideia brotou no cérebro velho do pastor esfaimado.
Todas as ovelhas eram iguais, feitas por Deus; então, porque
baliam as suas de fome e as do vizinho de fartura? E não
achava resposta boa para mistério tamanho. Não pensava
em si, na sua fome; se os homens eram também iguais, por
os ter feito a todos o mesmo Deus, não sabia ele, nem tal
coisa o preocupava. Mas as ovelhas, sim, nasciam iguais da
igualdade de Deus. E, sendo deste modo, qual o remédio?
Pedir pasto ao Libório? Não! Ele era homem rico, nada daria.
Mas os animais, sim, decerto não o negariam à fome dos
irmãos. Pedir a Libório? Isso nunca. E tal ideia não lhe saía
da cabeça. Ele, Melo Bichão, pastor desde menino, sabia
falar com o gado.

Entendia-o e fazia-se entender: por isso iria até ao curral do
vizinho e contaria às ovelhas gordas a fome das sete ovelhas
magras. Não lhe negariam o pasto.
A ideia cresceu no volver dos dias. Por fim, não cabia já na
cabeça velha de Melo Bichão. Até que, a meio de uma noite
escura, acordou o filho, enrolou-se na manta, pegou no
cajado, que as pernas faltavam-lhe, olhou os animais
estendidos no chão, e saiu para as trevas forradas de
branco. «Cala-te, Boa, cala-te, Negra...»


Nada bulia cá fora, quando Melo Bichão começou a andar
com o filho maluco atrás. Caminhava lentamente,
enterrando os pés na neve fofa, e o rapaz, que acordara
estremunhado, ia a imprecar contra a friagem. O pastor
velho pensava sempre:

«Todos os animais são filhos de Deus, uns com fome, outros
com fartura, coisa mal feita!»

Dobraram a casa grande de Libório, e a cerca do aprisco
barrou-lhes o caminho. Mexiam lá dentro as ovelhas, tiniam
de manso os chocalhos. A noite porém, estava muda. Mal
transpuseram a porteira e penetraram no coberto, viram
luzir, no escuro, os olhos dos animais. Melo Bichão riscou
um fósforo, e a luz, muito amarela, derramou-se, a tremer,
pela lã farta do gado. Falava em voz baixa, meigamente:
«Lindas, lindas...»


Depois, num sussurro, explicou-lhes ao que vinha. Baliram
as ovelhas ricas e Melo Bichão entendeu a resposta.
Dobrando-se, os ossos velhos a estalar, encheu de feno,
até а boca, o saco esfiapado. E o filho maluco imitou-o.

Deixaram por fim o curral, cada um com sua carga. А frente,
o velho apoiava-se no cajado; o filho, atrás, arrastava os pés
descalços, rezando maldições e gemidos.

Quando Melo Bichão já ia longe do cercado, uma voz fina
rasgou a noite muda:

Agarra qu’é ladrão! Agarra qu’é ladrão!

Rachando o silêncio de meio a meio, o berro sobressaltou
o pastor que, ajoujado com o peso do fardo, quis alargar o
passo.

Mas, alguns metros adiante, a armadilha da neve, ainda a
cair em flocos, entravou-lhe as pernas frouxas, como se
alguém, oculto debaixo da terra, lhas estivesse a puxar. Por
mais esforços que fizesse, retesando as coxas magras, não
conseguiu libertar-se.

E, de súbito, uma angústia dolorosa fê-lo ajoelhar
lentamente no frio e branco colchão. Ainda tentou
arrastar-se, abraçado ao saco de feno, a vida das suas
ovelhas: «Cala-te, Marrafa, cala-te, Negra... »
Porém, sob a manta espessa da neve, adormeceu para
sempre, já quase à porta de casa.

E o filho doido do pastor, girando como um pião em volta
do corpo do pai, continuava a gritar:

Agarra qu’é ladrão!


* * *

Aí está! Que causas, ocultas para nós, geraram tão terríveis
consequências? Sabemos que a Justiça Divina não falha
nunca. Se falhasse não seria divina. Que mistérios guarda o
inconsciente de um demente?

Abraço do tesco.

2 comentários:

Anônimo disse...

Dantinhas, grupo oito para Chico

Anônimo disse...


que coisa triste heim?
Dramático mesmo!
hiscla