Ler as histórias que Machado de Assis escreveu, para
ficar sabedor do enredo delas, é uma atividade de lazer,
por si só, interessante. Porém, se além de acompanhar
a trama das histórias, atentarmos para os detalhes que
Machado inclui em seus textos, ficaremos encantados
com a variedade de observações postas ali.
São notas e expressões dos mais variados naipes, indo
desde o irônico — fator praticamente característico de
Machado — até o poético, passando pelo filosófico e o
humorístico, sem deixar de anotar conceitos típicos da
época.
Anotei e exponho alguns desses detalhes,dos contos
que tenho lido ultimamente. Vejam o colorido da coisa.
Aqui mostrando o grotesco de uma figura:
"A cabeça de Justiniano Vilela, — se se pode chamar
cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas
— era um exemplo da prodigalidade da natureza quando
quer fazer cabeças grandes".
(in "As bodas de Luís Duarte").
Descendo na profundidade da mente de uma criatura,
não hesita em juntar coisas díspares:
"Calisto Valadares suspeitava que houvesse uma omissão
nas Escrituras, e vinha a ser que entre as pragas do Egito
devia ter figurado o piano. Imagine o leitor com que cara
viu ele sair uma das moças do seu lugar e dirigir-se ao
fatal instrumento".
(in "As bodas de Luís Duarte").
É um preciso descrevedor do seu tempo. Quando comecei
a me meter em poesia (e foi aos vinte anos) a atmosfera
era outra:
"É um lugar-comum em quase todos os poetas novéis
maldizer do destino e tecer elogios ao desânimo aos vinte
anos de idade".
(in "Possível e impossível").
Ainda conceitos do seu tempo, aos 36 anos, uma mulher,
se não era considerada velha, estava ali, no quase-quase:
"A recém-chegada estava então sentada junto à dona da
casa, senhora de trinta e seis anos, ainda bela, mas dessa
beleza do outono e do crepúsculo que ainda reúne
elementos para impressionar".
(in "Possível e impossível").
Uma tirada atual até agora, os filósofos, agora também
chamados de cientistas, continuam com as mesmas ideias
"d'antanho":
"Depois que os filósofos modernos, com a mania de
destruir tudo, afirmaram que o criador era uma invenção
dos homens, eu, que não dou ao acaso as honras de ter
criado o universo, substituí Deus por um grande feiticeiro,
autor de todas as coisas, e nem por isso sou mais absurdo
que os filósofos".
(in "Os óculos de Pedro Antão").
Vejam a originalidade, olhos eloquentes, tudo bem,
mas comparados a discursos de Cícero contra Catilina
(são chamados de catilinárias), nunca tinha visto:
"— Poderei crer no que me diz? perguntou ela.
A resposta do jovem médico foi apertar-lhe muito a mão,
e cravar nela uns olhos mais eloqüentes que duas
catilinárias".
(in "O sainete").
Outra alusão aos costumes da época. As mulheres não
tinham outro objetivo na vida (nem poderiam), a não ser
arranjar um marido:
"Lapa trabalhava de luneta. Quando ele a metia na arcada
do olho esquerdo, encarquilhando a cara desse lado,
ficava mais desengraçado que sem ela; mas Joaninha, que
não procurava um engraçado, mas um marido, não notava
a diferença ou agravo, e acudiu à luneta com os seus olhos
de vista clara e longa".
(in "A inglesinha Barcelos").
Humorístico e irônico, se refere ao marido de D. Angélica
(o mesmo da citação seguinte), provavelmente uma pessoa
medíocre:
"Basta saber que morreu quando de todo se lhe extinguiu
a vida, coisa que provavelmente não lhe aconteceu sem
perder a saúde".
(in "Um dia de entrudo").
A ironia se revela aqui, um respeitado cavalheiro, que...
Deixa que ele mesmo diz. A corrupção não é coisa nova.
"Mas não lhe falem de homem que mereça o respeito,
o amor e a consideração, porque D. Angélica cita logo
um caso do marido que, entre parênteses, enriqueceu
em pouco tempo".
(in "Um dia de entrudo").
Lição de profundo alcance. A teoria pode ser muito bonita,
mas sem prática, é letra morta, de nada vale:
"— Não te iludas, disse ele, a melhor lição deste mundo não
vale um mês de experiência e de observação. Abre um
moralista; encontrarás excelentes análises do coração
humano; mas se não fizeres a experiência por ti mesmo
pouco te valerá o teres lido. La Rochefoucauld aos vinte
anos faz dormir; aos quarenta é um livro predileto...".
(in "Tempo de crise").
Poesia ou filosofia? Realmente, as ambições materiais
vão ficando pelo caminho (nem sempre), esculpindo o
homem lentamente:
"Também ele tivera ambições, que o tempo levou,
como leva outros tantos pedaços da alma".
(in "Silvestre").
Vejam que beleza de imagem!
E se pensarmos bem, quanto prefácio bonito tem resultado
em tantos péssimos livros (homens e mulheres):
"A de doze era uma criança querendo ser moça,
um lindo prefácio de mulher. Qual seria o livro?".
(in "Muitos anos depois").
Descrevendo uma personalidade. Reparem a acuracidade
com que traça o perfil de gente que já conhecemos:
"...era dessas mulheres que, emendando a natureza, que as
não fez nascer no trono, fazem-se rainhas por si mesmas".
"Seus lábios não eram feitos para a súplica
nem seus olhos para a meiguice".
(in "Muitos anos depois").
Finalmente (por hoje já chega), dando o endereço de uma
casa, nos leva a um tempo em que as ruas tinham nomes
bonitos. Não era essa barafunda de hoje, em que a rua
Deputado Não-Sei-Quem cruza com a Av. Desembargador
Sei-Lá-Das-Quanta, confluindo na Alameda Senador
Despautério de Souza. Uma coisa Horrorosa!
Vejam a delicadeza do tempo de Machado:
“...na Rua de S. Pedro [...] entre a Rua Formosa e
a Rua das Flores”.
(in "Casa não casa").
Pois é, digníssimos leitores, lendo Machado, só não se
diverte quem não quer.
Abraço do tesco.
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4 comentários:
realmente fantástico, né?
sem palavras!
hiscla
Percebe-se que você, Roberto, lê com a alma...Beijos!
Tesco, faz algum tempo que não leio Machado, mas me lembro que quando adolescente, cheguei a devorar seus livros, justamente devido a essa ironia que lhe é peculiar.
Obrigada pelo elogio que vc fez ao meu blog. Adoro seus comentários, sempre tão pertinentes. Muita paz!
Meu caro, pouco posso opinar sobre esse tipo de literatura, espero que um dia minha profissão me de tempo para conhecer de verdade!
hiscla
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