Já espinafrei a letra de "Colher de chá", de Tony Osanah, e já
critiquei a versão de "Smile", feita por Braguinha, agora inicio
uma pequena série para exaltar as letras primorosas de
algumas músicas.
Em 1980, a escola de samba da Vila Isabel apresentou como
samba-enredo a obra "Sonho de um sonho", composta por
Martinho da Vila, Rodolfo de Souza e Tião Graúna, trio ao qual
vários sites acrescentam Aluísio machado e Beto Sem-Braço.
A letra do samba foi elaborada sobre o poema homônimo de
Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro "Claro
Enigma", em 1951.
O poema não tem estrutura para suportar a melodia de um
samba, por isso os compositores fizeram a "dissecação" do
mesmo. Corta daqui, remove dali, enxerta mais esse e, até
podia-se esperar que um Frankesntein surgisse desse esforço.
Mas o que apareceu foi uma obra-prima, foi como se tivessem
lapidado um diamante! O próprio Drummond gostou do
trabalho.
A música pode ser ouvida na voz de Martinho da Vila,
ou da própria escola de samba Unidos de Vila Isabel.
A letra é esta:
SONHO DE UM SONHO
(Martinho da Vila / Rodolpho / Graúna)
Sonhei
Que estava sonhando um sonho sonhado
O sonho de um sonho
Magnetizado
As mentes abertas
Sem bicos calados
Juventude alerta
Os seres alados
Sonho meu
Eu sonhava que sonhava
Sonhei
Que eu era o rei que reinava como um ser comum
Era um por milhares, milhares por um
Como livres raios riscando os espaços
Transando o universo
Limpando os mormaços
Ai de mim
Ai de mim que mal sonhava
Na limpidez do espelho só vi coisas limpas
Como uma lua redonda brilhando nas grimpas
Um sorriso sem fúria, entre réu e juiz
A clemência e a ternura por amor da clausura
A prisão sem tortura, inocência feliz
Ai meu Deus
Falso sonho que eu sonhava
Ai de mim
Eu sonhei que não sonhava
* * *
O que me levou a prestar mais atenção nessa letra, foi a
interpretação diferente dada por Ithamara Koorax.
Ela acrescenta como que uma dimensão mística à coisa, e
é quase uma declamção que ela faz.
Mas o que é que tem de notável nessa letra?
Bem, toda ela é boa, mas eu destaco dois aspectos sutis (ou
nem tanto). Primeiro é quando se diz que:
"sonhei que era um rei que reinava como um ser comum".
Reparem que o poema é de 1951, Getúlio Vargas estava na
presidência do país, mas já não era ditador. Drummond, que
viveu toda a ditadura Vargas, certamente se referia àquele
período de arbitrariedades.
Porém, quando o poema foi transformado em samba-enredo,
em 1980, o país estava em plena ditadura, diluída, mas ainda
ditadura. E os generais, como todos os ditadores, não são
"seres comuns", pelo menos, não se consideram assim.
Naturalmente são seres 'divinos' ou, no mínimo, designados
por Deus para "guiar os pobres mortais" como nós.
Um outro verso marcante é "A prisão sem tortura", heresia
para muitos dos militares na época. Digo 'muitos' porque
não eram todos: Em 1972 eu estava prestando o serviço militar,
e distinguia perfeitamente os oficiais que não compartilhavam
o mesmo pensamento da cúpula diretiva do país.
Por fim, é de se notar a desilusão do sonhador, exressada
pelo poeta, no verso final: "Eu sonhei que não sonhava!".
É uma sensação cruel, sem dúvida nenhuma, nos sonhos
relacionados ao período do sono comum, a impressão que
se tem de estar vivendo a realidade material é muito forte.
Então, ao acordar e verificar que os "fatos" do sonho eram
tão somente sonhos, o sonhador tem vontade de chorar.
Ai, meu Deus!
Eis aí um exemplo de letra bem feita, com uma mensagem
bela. É uma preciosidade.
Abraço do tesco.
5 comentários:
pois, gostei da poesia e de seus comentários, mas não me lembro da musica.
hiscla
Caro Tesco, a interpretação dela é maravilhosa!
Sem demérito para gênero, é muito mais do que um samba-de-enredo.
Um pequeno adendo: Drummond foi Chefe de Gabinete do Ministério da Educação e Cultura (do Ministro Gustavo Capanema) na Ditadura Vargas, outros intelectuais brilhantes (Villa-Lobos, por exemplo) também ocuparam cargos importantes no MEC, na Era Vargas.
Em 1980 já houvera a anistia e a "dita dura estava amolecendo".
Muito boas suas observações.
Manoel Carlos
Complemento importante do Manoel Carlos. Obrigado, Mano.
Tesco, lembro muito da música. Maravilha.
Muito interessante essa sua análise. Devo confessar que não consigo prestar atenção às letras das músicas, então, foi muito legal tê-la explicada.
Quanto ao seu comentário, que sua missão seria de modificar-se, penso que muitos de nós temos essa missão e que de fato não é fácil. Como bem diz vc, é uma grande luta interior. Muita paz!
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