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sábado, 1 de setembro de 2018

NÓS, O PISTOLEIRO, NÃO DEVEMOS TER PIEDADE


Nós somos um terrível pistoleiro. 
Estamos num bar de uma pequena cidade do Texas. 
O ano é 1880. 

Tomamos uísque a pequenos goles. 
Nós temos um olhar soturno. 
Em nosso passado há muitas mortes. 
Temos remorsos. 
Por isto bebemos. 

A porta se abre. Entra um mexicano chamado Alonso. 
Dirige-se a nós com despeito. 
Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar a espora. 
Nós fingimos ignorá-lo. 
Continuamos bebendo nosso uísque a pequenos goles. 

O mexicano aproxima-se de nós. 
Insulta-nos. 
Esbofeteia-nos. 
Nosso coração se confrange. 
Não queríamos matar mais ninguém. 
Mas teremos de abrir uma exceção para Alonso, 
cão mexicano. 

Combinamos o duelo para o dia seguinte, ao nascer do sol. 
Alonso dá-nos mais uma pequena bofetada e vai-se. 

Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. 
Finalmente atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão 
e saímos. 
Caminhamos lentamente em direção ao nosso hotel. 
A população nos olha. 
Sabe que somos um terrível pistoleiro. 
Pobre mexicano, pobre Alonso. 

Entramos no hotel, subimos ao quarto, 
deitamo-nos vestido, de botas. 
Ficamos olhando o teto, fumando. 
Suspiramos. 
Temos remorsos. 

Já é manhã. 
Levantamo-nos. 
Colocamos o cinturão. 
Fazemos a inspeção de rotina em nossos revólveres. 
Descemos. 

A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas 
adivinhamos os olhos da população fitos em nós. 
O vento sopra, 
levantando pequenos redemoinhos de poeira. 

Ah, este vento! 
Este vento!  
Quantas vezes nos viu caminhar lentamente, 
de costas para o sol nascente? 

No fim da rua, Alonso nos espera. 
Quer mesmo morrer, este mexicano. 

Colocamo-nos frente a ele. 
Vê um pistoleiro de olhar soturno, o mexicano. 
Seu riso se apaga. 
Vê muitas mortes em nossos olhos. 
É o que ele vê. 

Nós vemos um mexicano. 
Pobre diabo. 
Comia o pão de milho, já não comerá. 
A viúva e os cinco filhos o enterrarão ao pé da colina. 
Fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz. 
A filha mais velha se tornará prostituta. 
O filho menor ladrão. 

Temos os olhos turvos. 
Pobre Alonso. 
Não se devia nos ter dado suas bofetadas. 
Agora está aterrorizado. 
Seus dentes estragados chocalharam. 
Que coisa triste. 

Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. 
É nossa. 
Levamos a mão ao coldre. 
Mas não sacamos. 
É o mexicano que saca. 
Vemos a arma na sua mão, 
ouvimos o disparo, 
a bala voa para o nosso peito, 
aninha-se em nosso coração. 
Sentimos muita dor e tombamos. 

Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano. 
Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade. 
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Moacyr Scliar 
(“Contos fantásticos”, volume 2)

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