Fuçando no blog de Bráulio Tavares, Mundo Fantasmo,
encontro esta pérola que é a lenda dos "Olhos culpados",
que, coitados, são quem menos têm culpa neste cartório.
Além de nos narrar a lenda, Bráulio faz uma análise muito
criteriosa dela, o que bem vale os poucos minutos que
passemos imersos neste universo de lenda/análise.
Por isso atrevo-me a transcrever esta sua poatagem:
OS OLHOS CULPADOS
"As narrativas curtas que chamamos variadamente de
fábula, apólogo, lenda, caso, etc., têm uma economia
narrativa própria que não é a mesma do conto literário.
É como se fosse uma história mais longa que foi perdendo
adornos e adereços ao longo do caminho através do
tempo, e ficou reduzida somente ao essencial.
A narrativa abaixo está na Antologia da Literatura
Fantástica (org. Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e
Silvina Ocampo, Cosac Naify, 2013, trad. Josely Vianna
Baptista). Ela é atribuída a Ahmed Ech Chiruani, autor
talvez inventado, porque o Google não parece saber sobre
ele mais do que eu sei.
OS OLHOS CULPADOS
Ahmed Ech Chiruani
Contam que um homem comprou uma moça por quatro mil
denários. Um dia olhou para ela e começou a chorar.
A moça lhe perguntou por que estava chorando; ele
respondeu:
– Tens olhos tão belos que me esqueci de adorar a Deus.
Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios olhos.
Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.
Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar
a Deus.
De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia:
“A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para
nós e a tiramos de ti.” Ao acordar, encontrou quatro mil
denários sob o travesseiro. A moça estava morta.
* * *
Primeiro que tudo, olha que maneira mais eficiente de
começar uma história:
1. Contam que um homem comprou uma moça por quatro
mil denários.
“Contam”, abrindo uma narrativa, equivale, estruturalmente
falando, a “era uma vez”. Joga os 100% da história para o
território do mítico, do oral, do lendário, do ouvi-dizer.
Algo parecido ocorre com o uso da moeda “denário”: era
uma moeda romana (o Google se redime informando-me
que essa moeda valia um dia de salário de um trabalhador),
portanto historicamente datada. Mas isso é a moeda, não a
palavra: a palavra, como símbolo de valor monetário, deu o
francês “denier”, o árabe “dinar” e o português “dinheiro”.
Estamos, portanto, em pleno território do arquétipo.
E essa beleza de construção: “comprou uma moça”. O
autor não diz que era uma escrava. Não precisa. Comprar
escravos nesse mundo é como comprar um cavalo ou um
passarinho. O homem comprou uma moça – e não era uma
moça qualquer, porque ele pagou o equivalente a quatro
mil dias de trabalho de um trabalhador comum.
Digamos que, com nosso salário mínimo em torno de
900,00 reais, um dia de trabalho valha em torno de 30 reais:
a moça custou 120 mil reais. Não era uma moça qualquer.
Se aparecesse numa revista não seria em Baratas, mas em
Caras.
2. Um dia olhou para ela e começou a chorar.
É típico dessas narrativas darem saltos bruscos de frase
em frase, sem muitas explicações. Quem era o homem?
Tinha esposa(s), filhos? Que papel a moça foi
desempenhar junto a ele: empregada doméstica, serva
sexual, o quê? Não sabemos. Nesta segunda frase o autor
pula direto para o fato inusitado que desencadeia o
desfecho. A frase 1 é introdução, da 2 em diante tudo
é resultado.
3. A moça lhe perguntou por que estava chorando.
Existem trinta mil livros cuja história começa com alguém
chorando e alguém perguntando por quê. É sempre uma
boa maneira de começar, se não um livro inteiro, pelo
menos um capítulo. “Certa tarde, ao descer a escadaria
que levava ao salão, Fulana ouviu ruídos abafados.
Aproximando-se, viu que Sicrano estava sentado numa
saleta lateral, com o rosto entre as mãos, os ombros
sacudidos por soluços...” Sempre funciona.
4. Ele respondeu: – Tens olhos tão belos que me esqueci
de adorar a Deus.
O amor, seja físico, seja platônico, nos distrai das paixões
abstratas, entre as quais pensar em Deus não é uma de se
jogar fora. Que o diga Nelson Gonçalves, neste bolero (de
David Nasser e Herivelto Martins) que parece adaptado do
conto de Ahmed Ech Chiruani:
“Eu amanheço pensando em ti
Eu anoiteço pensando em ti
Eu não te esqueço, é dia e noite pensando em ti...
Eu vejo a vida pela luz dos olhos teus...
Me deixa ao menos, por favor, pensar em Deus.”
(Gravação original: "Pensando em ti"
Parar de pensar em Deus parece uma tragédia,
principalmente parar de pensar em Deus por causa de uma
curvilínea comprada em moeda sonante. Isto nos prepara
(mas não totalmente) para o próximo ziguezague da
narrativa.
5. Quando ficou sozinha, a moça arrancou os próprios
olhos.
Nesse passado milenar e machista, a mulher sente que está
trazendo turbulência espiritual para a vida do seu amo e
senhor, e decide punir a si própria. E deixa para fazê-lo
quando fica sozinha, para que ninguém tente impedi-la.
Em contos assim não há meio termo. As pessoas só tomam
decisões radicais.
6. Ao vê-la nesse estado, o homem ficou aflito e disse:
– Por que te maltrataste assim? Diminuíste teu valor.
Esta fala é de um ambiguidade fascinante. Ele poderia ter
dito: “-- Nunca mais verás as coisas belas da vida... / -- Não
devias ter te maltratado tanto... / -- Perdi os olhos que tanto
adorava / ...” – enfim, poderia ter tido mil reações de horror
ou de dó. Mas não: “Diminuíste o teu valor (de mercado).
Ninguém a quem eu queira te vender (porque vou te
vender, já que não tens mais aquilo que me encantava) vai
me pagar o preço que investi em ti.”
Ressalva: Existe a possibilidade, caso de fato seja um
conto oriental, de algo ter se modificado na tradução.
A frase no original podia ser algo como “perdeste algo
valioso”, ou “diminuíste a beleza que te valorizava”...
Muitas vezes a tradução, mesmo tentando ser fiel, impõe
um sentido que o original não tinha.
7. Ela respondeu:
– Não quero que haja nada em mim que te afaste de adorar
a Deus.
É um desses diálogos de que o cinema está cheio, o das
mulheres altruístas que se sacrificam para que o homem
amado possa, sei lá, casar com uma princesa sem que ela,
uma namorada plebéia, o atrapalhe, ou separam-se do
amado que vai se candidatar a um cargo público e não
pode mostrar o mundo uma amante negra... Todos os mil
sacrifícios feitos em nome do amor. Mesmo que se trate
(no presente caso) do amor impossível de uma mulher
pelo homem que a comprou.
8. De noite, o homem ouviu em sonho uma voz que dizia:
“A moça diminuiu seu valor para ti, mas o aumentou para
nós e a tiramos de ti.”
O sonho, nesses contos orientais, é quase sinônimo da voz
de Deus (em contos ocidentais modernos, é a voz do
Inconsciente Freudiano). Portanto, é Deus, o Deus em
quem ele deixara de pensar, que se comove com o
sacrifício da moça. (Veja-se também o plural divino, que
pode ser visto como o plural majestático dos reis, ou como
uma insinuação de um Deus múltiplo.)
Deus percebe que ela sacrificou os próprios olhos não
somente pelo homem, para que pudesse pensar em Deus,
mas também por Deus, para que pudesse ser adorado em
paz. Deus agradece à moça o gesto elegante de ter se
retirado da disputa e deixado caminho livre para Ele no
coração do homem.
9. Ao acordar, encontrou quatro mil denários sob
o travesseiro. A moça estava morta.
Um desfecho perfeito, em duas frases tão indissolúveis
uma da outra quanto as duas faces da Lua. Deus leva a
moça e devolve o dinheiro que o homem, por um instante,
julgou ter perdido. E, ironicamente, a história termina como
começou: a moça sendo novamente comprada por quatro
mil denários.
A leitura do ponto de vista feminino nos mostra a tragédia
de uma moça vendida como escrava, que acaba assediada
pelo patrão por sua beleza, assusta-se, mutila-se para
escapar-lhe, e acaba morrendo. A moça é quem menos
ganha com tudo que aconteceu.
O homem compra uma escrava, deixa-se levar por uma
paixão carnal, perde a escrava, recupera o dinheiro.
E ganhou o que com tudo isto? Ganhou a experiência;
ganhou um fato extraordinário em sua vida; ganhou (talvez
o conto seja autobiográfico, e o homem da história seja
Ahmed Ech Chiruani) uma história para contar."
*** *** ***
Você leu e gostou, não?
Sempre é bom divulgar o que nos causa boa impressão!
Abraço do tesco.
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