da página, mas é deveras pertinente:
Os mecanismos midiáticos
que livram a cara dos crimes
das polícias militares no Brasil
que livram a cara dos crimes
das polícias militares no Brasil
Laura Capriglione
"O estado de São Paulo tem um personagem inconveniente,
insuportável mesmo. É uma mulher, espécie de maluca, dessas
que aparecem nas horas erradas, chamam atenção para si,
choram, carregam cartazes, brigam, falam alto.
Chama-se Débora Maria da Silva, que ficou desse jeito desde que
seu filho foi assassinado por homens encapuzados durante o
revide policial aos ataques da organização criminosa PCC
(Primeiro Comando da Capital), em maio de 2006.
Na ocasião, um verdadeiro massacre foi cometido no estado. Em
apenas dez dias, entre 12 e 21 de maio de 2006, caíram mortos
505 civis, assassinados em supostos confrontos com a polícia,
executados sumariamente por soldados da PM ou vitimados por
grupos de encapuzados. No mesmo período, 59 agentes públicos
foram mortos naquilo que consistiu a principal ação do PCC
contra o aparelho do Estado. Segundo o sociólogo Ignácio Cano,
do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual
do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual
do Rio de Janeiro, um dado esclarecedor sobre as motivações da
morte de tantos civis (a dos agentes públicos, afinal, já se sabia
a mando de quem havia sido realizada) reside na cronologia
dos
fatos.
Enquanto os agentes públicos foram mortos nos dias 12 e 13, os
civis foram assassinados, fundamentalmente, entre os dias 14 e
17. Disse Cano em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo:
“Esse quadro reforça a suspeita de que houve uma represália às
ações do PCC, uma vez que a maior parte dos civis morreu nos
dias seguintes”.
O filho de Débora, Édson Rogério da Silva, foi um desses 505
civis. Morreu na Baixada Santista, para integrar as estatísticas
do matadouro em que se transformou o estado de São Paulo.
E seria
apenas isto: mais um sujeito preto, pobre e favelado a
a engrossar as análises frias dos trabalhos acadêmicos e as
páginas policiais de jornais e revistas.
páginas policiais de jornais e revistas.
Devastada pela dor da perda do filho, Débora chegou a dormir no
cemitério onde ele se encontra enterrado, em Santos. E, então,
levantou-se para fazer a voz dele reviver na sua própria. Fundou
a organização Mães de Maio para cobrar a responsabilidade do
Estado no assassinato e no desaparecimento de moradores das
periferias pobres.
O nome Mães de Maio parece ecoar o de outro movimento contra
massacres cometidos pelo Estado, o Mães da Praça de Maio, que
age contra os crimes da ditadura militar argentina. Também
essas mães eram inconvenientes, intransigentes, insuportáveis.
E, por isso, eram chamadas de “las locas de la plaza de Mayo”.
Mas elas mudaram a história. E é isso o que Débora também quer
em sua incansável militância diária.
A dor de Débora fez dela a maior referência dos milhares de pais
e mães que, desde 2006, perderam seus filhos devido à ação da
Polícia Militar. Assim, o movimento Mães de Maio começou a
juntar também mães de outros meses, de 2007, 2008, 2009, até
hoje. E não para de crescer, porque a polícia nunca cessou de
tratar os pretos pobres, moradores das periferias, como
“suspeitos padrão”.
Débora exige apuração dos crimes. Mostra o rosto devastado
dos pais chorando a morte dos filhos. Dá nome e sobrenome
às vítimas. Cobra ação da Justiça.
às vítimas. Cobra ação da Justiça.
Denuncia a reação anestésica da mídia tradicional. Escracha os
programas sensacionalistas, que vivem de incitar a população
à prática da vingança de sangue. Débora incomoda porque
desnuda a violência estatal, uma violência bifronte que se
apóia em duas lógicas distintas, mas complementares:
1) a lógica policial militar, que entende os cidadãos negros,
pobres e periféricos como inimigos potenciais do Estado que
os exclui;
2) a lógica da violência simbólica, operada principalmente pela
mídia tradicional, que desumaniza e criminaliza as vítimas,
atuando como salvo-conduto para a prática da violência policial.
Senão, vejamos: o exercício racista da violência do Estado
brasileiro é de fazer inveja ao mais racista entre os policiais de
Baltimore, nos Estados Unidos, onde uma onda de rebeliões
negras em 2015 tem denunciado a covardia dos agentes
públicos, matando e torturando cidadãos afrodescendentes
como se nem humanos fossem.
Pois a PM de São Paulo matou 10.152 pessoas entre julho de
1995 e abril de 2014. Entre 2008 e 2012, foram 9,5 vezes mais do
que todas as polícias dos Estados Unidos. Enquanto os Estados
Unidos registraram 0,63 morte a cada 100 mil habitantes, em
São Paulo o índice foi de 5,87 no mesmo período.
A maioria era de moradores das periferias pobres, negros ou
pardos. Apesar disso, enquanto os Estados Unidos assistem a
um processo de indignação e protestos pelas mortes decorrentes
de ação policial, inclusive com homenagens a todos os negros
mortos pela polícia nos últimos meses (Michael Brown, Tamir
Rice e Eric Garner, entre outros), no Brasil opera-se uma espécie
de anestesia da sensibilidade social, da qual só agora
começamos a sair.
Como aconteceu essa dessensibilização, a ponto de nenhum
horror terem causado as mortes de 505 civis em um único estado
da Federação em apenas dez dias?
Como se desligaram os sensores humanos da tragédia social,
quando milhares de pessoas são vítimas de um Estado
ultraviolento e intrinsecamente racista?
Um dos mecanismos opera pelo registro da invisibilidade do
outro, dos outros, dos que não moram em Higienópolis, nos
Jardins, no Leblon ou em Ipanema. A tragédia do filho morto no
Capão Redondo ou no Alemão vira registro. Em Ipanema ou nos
Jardins, é matéria de capa. A invisibilidade da realidade da
periferia é parte do mecanismo que permite a supressão de
direitos.
Só reivindica direitos quem é visível no campo do debate
democrático. Tornar invisíveis os problemas vividos pelos
moradores da periferia é uma forma de eludir suas
reivindicações.
Explica-se: quando foi assassinado pela polícia o publicitário
Ricardo Prudente de Aquino, em julho de 2012, depois de
ultrapassar uma barreira policial em Alto de Pinheiros, um dos
bairros mais ricos de São Paulo, fizeram-se manifestações e
protestos, amigos vestidos de branco, rosas nas mãos, missa
na igreja Nossa Senhora do Brasil – a mesma dos casamentos
da elite paulistana. Repórteres de toda a imprensa presentes.
Ricardo era uma exceção branca num monte de cadáveres
negros e pobres. No mesmo mês, a polícia matara um jovem
segurança morador do fundão da Zona Sul da cidade.
A justificativa foi tê-lo confundido com um bandido.
Como aconteceu no bairro rico, mãe, pai, amigos e colegas de
trabalho desfilaram pelas ruas da periferia, com camisetas
brancas e rosas nas mãos. Mas a mãe já sabia: “Protesto por
assassinato de pobre não aparece no jornal”. Não apareceu
mesmo. Foi noticiado apenas como “registro”, ou nota curta,
sem foto.
Em certo sentido, isso se deve ao paroquialismo dos jornais,
com jornalistas cobrindo preferencialmente suas vizinhanças,
seu próprio espaço vital, onde circulam seus amigos e seus
familiares. É também porque os bairros ricos e de classe média
concentram o leitorado dos jornais, a clientela direta. Por fim,
tem a ver com a adesão ao projeto político tucano, que
hegemoniza a política paulista há vinte anos. O governador
do estado é o chefe da Secretaria de Segurança Pública.
Outro mecanismo acontece pela manipulação da narrativa.
O assassinato de um jovem trabalhador pela polícia é
apresentado como “confronto”. A vítima, criminalizada, é
invariavelmente acusada de ser traficante, de ter resistido à
prisão, de estar armada, versão que a mídia tradicional
retransmite docilmente e, na maioria dos casos, sem checar.
É uma covardia. Dotada de imensa assessoria de imprensa, a
Polícia Militar e a Secretaria de Segurança Pública fabricam
suas “verdades” contra famílias pobres, desassistidas e
desesperadas pela dor e pelo medo, muitas vezes ameaçadas
caso ousem falar.
caso ousem falar.
Uma das maiores violências cometidas contra a família dos
jovens assassinados pela Polícia Militar e contra a própria
memória das vítimas reside em sua criminalização póstuma.
Já entrevistei dezenas de pais e mães de vítimas como forma de
documentar a violência policial, e a primeira coisa que a maioria
deles faz é apresentar a carteira de trabalho do filho morto. Uma
dessas mães mostrou-me a carta de condolências que o gerente
da loja McDonald’s em que o filho trabalhava mandou-lhe depois
do assassinato do menino por dois policiais militares fora de
serviço. A carta dizia que o jovem era um funcionário exemplar.
No enterro do jovem, colegas de escola e de emprego fizeram
questão de estar presentes, em solidariedade. Para a poderosa
assessoria de imprensa da polícia, entretanto, ele era apenas um
ladrão. Nos jornais, a autoridade policial apareceu dizendo que
o rapaz havia assaltado um supermercado e depois resistido –
armado – à ordem de prisão. Estava “justificada” a morte.
A mãe “foi procurada, mas não foi encontrada” figura, como
sempre, a justificativa para a falta do chamado “outro lado”.
E o menino virou bandido, algo que lança o estigma do crime
sobre a memória dele e sobre toda a sua família.
Outro recurso narrativo a favorecer a culpabilização da vítima
consiste na extração do jovem morto de qualquer contexto
afetivo, familiar, de vizinhança.
O resultado do processo é ele ser reduzido à condição de
“bandido absoluto”. Na maior parte das vezes, nem nome o
morto possui nos registros dos jornais.
O caso do pedreiro Amarildo é exemplar da atuação desse
mecanismo, usado no piloto automático pela mídia tradicional.
Ao mesmo tempo, trata-se de um marco a mostrar a potência das
contranarrativas geradas nas redes sociais por comunidades e
movimentos por direitos humanos.
O pedreiro Amarildo foi preso, torturado e morto pela Polícia
Militar do Rio de Janeiro no dia 14 de julho de 2013. Os jornais
tradicionais, fiéis às assessorias de imprensa da polícia,
apressaram-se em veicular a versão de que ele seria um
traficante ou um prototraficante e que seu desaparecimento
decorreria de acertos entre bandidos.
Foi graças à troca de mensagens, torpedos e à campanha “Onde
está o Amarildo?”, iniciada nas redes sociais, especialmente no
Facebook, com o apoio de movimentos como o Mães de Maio (da
inconveniente Débora) e da Rede de Comunidades e Movimentos
contra a Violência, que Amarildo tornou-se pedreiro e resgatou,
post mortem, sua humanidade.
Assim, descobriu-se que ele, que tinha o apelido de “Boi”, era
casado com a dona de casa Elizabeth Gomes da Silva e pai de
seis filhos, com quem dividia um barraco de um único cômodo.
Os jornais tradicionais – sob o risco da desmoralização – foram
obrigados a ir atrás da verdadeira história do pedreiro
assassinado.
Por fim, linha auxiliar importantíssima na manipulação, na
justificação e no incentivo da violência policial, estão os
programas sensacionalistas vespertinos, que têm entre suas
maiores estrelas os apresentadores Marcelo Rezende e José
Luiz Datena. [artigo esqcrito em 2015]
Segundo o tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de
São Paulo Adilson Paes de Souza, esses programas enaltecem
a associação de “truculência e arbitrariedade policial com o
exercício de autoridade”. Segundo ele, alimentam ainda mais
essa violência porque são consumidos avidamente nos quartéis.
“O efeito terapêutico dessas falas nos policiais militares é
terrível”, moldando sua ação violenta e justificando-a.
Hoje, o Brasil começa a mostrar a potência das contranarrativas
feitas em rede e, como acontece nos Estados Unidos,
multiplicam-se os registros em vídeo das violências cometidas
por PMs, os quais viralizam pela internet; temos vítimas com
nome e sobrenome, com história, com família, com luto, com
carteira de trabalho.
Temos vítimas que são objeto de saudades. Graças à ativa
entrada dos pobres nas redes sociais, começam a ser
desmontadas as mentiras veiculadas pelas assessorias de
imprensa das polícias em conluio com uma imprensa
desqualificada e adepta de soluções fáceis e apurações
“por telefone”.
Esse é o caminho e o legado deixados pelas tantas mortes de
Amarildos, Cláudias, Douglas, Eduardos de Jesus. “Nossos
mortos têm voz”, dizem as Mães de Maio. Cada vez mais."
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(in "Bala perdida", org. B. Kucinski, 2015)
Abraço do tesco.
Abraço do tesco.
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