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segunda-feira, 24 de julho de 2017

LIVRANDO A CARA DA POLÍCIA

Um dos textos de "Bala perdida". É longo para os padrões
da página, mas é deveras pertinente: 



Os mecanismos midiáticos
que livram a cara dos crimes
das polícias militares no Brasil

Laura Capriglione

"O estado de São Paulo tem um personagem inconveniente, 
insuportável mesmo. É uma mulher, espécie de maluca, dessas 
que aparecem nas horas erradas, chamam atenção para si, 
choram, carregam cartazes, brigam, falam alto. 
Chama-se Débora Maria da Silva, que ficou desse jeito desde que 
seu filho foi assassinado por homens encapuzados durante o 
revide policial aos ataques da organização criminosa PCC 
(Primeiro Comando da Capital), em maio de 2006. 

Na ocasião, um verdadeiro massacre foi cometido no estado. Em 
apenas dez dias, entre 12 e 21 de maio de 2006, caíram mortos 
505 civis, assassinados em supostos confrontos com a polícia, 
executados sumariamente por soldados da PM ou vitimados por 
grupos de encapuzados. No mesmo período, 59 agentes públicos 
foram mortos naquilo que consistiu a principal ação do PCC 
contra o aparelho do Estado. Segundo o sociólogo Ignácio Cano,
do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual 
do Rio de Janeiro, um dado esclarecedor sobre as motivações da 
morte de tantos civis (a dos agentes públicos, afinal, já se sabia
a mando de quem havia sido realizada) reside na cronologia
dos 

fatos. 

Enquanto os agentes públicos foram mortos nos dias 12 e 13, os 
civis foram assassinados, fundamentalmente, entre os dias 14 e 
17. Disse Cano em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo: 
“Esse quadro reforça a suspeita de que houve uma represália às 
ações do PCC, uma vez que a maior parte dos civis morreu nos 
dias seguintes”. 

O filho de Débora, Édson Rogério da Silva, foi um desses 505 
civis. Morreu na Baixada Santista, para integrar as estatísticas  
do matadouro em que se transformou o estado de São Paulo. 

E seria
 apenas isto: mais um sujeito preto, pobre e favelado a 

a engrossar as análises frias dos trabalhos acadêmicos e as
páginas policiais de jornais e revistas. 

Devastada pela dor da perda do filho, Débora chegou a dormir no 
cemitério onde ele se encontra enterrado, em Santos. E, então, 
levantou-se para fazer a voz dele reviver na sua própria. Fundou 
a organização Mães de Maio para cobrar a responsabilidade do 
Estado no assassinato e no desaparecimento de moradores das 
periferias pobres. 

O nome Mães de Maio parece ecoar o de outro movimento contra 
massacres cometidos pelo Estado, o Mães da Praça de Maio, que 
age contra os crimes da ditadura militar argentina. Também 
essas mães eram inconvenientes, intransigentes, insuportáveis. 
E, por isso, eram chamadas de “las locas de la plaza de Mayo”. 
Mas elas mudaram a história. E é isso o que Débora também quer 
em sua incansável militância diária. 

A dor de Débora fez dela a maior referência dos milhares de pais 
e mães que, desde 2006, perderam seus filhos devido à ação da 
Polícia Militar. Assim, o movimento Mães de Maio começou a 
juntar também mães de outros meses, de 2007, 2008, 2009, até 
hoje. E não para de crescer, porque a polícia nunca cessou de 
tratar os pretos pobres, moradores das periferias, como 
“suspeitos padrão”. 

Débora exige apuração dos crimes. Mostra o rosto devastado 
dos pais chorando a morte dos filhos. Dá nome e sobrenome
às vítimas. Cobra ação da Justiça. 

Denuncia a reação anestésica da mídia tradicional. Escracha os 
programas sensacionalistas, que vivem de incitar a população
à prática da vingança de sangue. Débora incomoda porque 
desnuda a violência estatal, uma violência bifronte que se 
apóia em duas lógicas distintas, mas complementares:
1) a lógica policial militar, que entende os cidadãos negros, 
pobres e periféricos como inimigos potenciais do Estado que
os exclui; 
2) a lógica da violência simbólica, operada principalmente pela 
mídia tradicional, que desumaniza e criminaliza as vítimas, 
atuando como salvo-conduto para a prática da violência policial. 

Senão, vejamos: o exercício racista da violência do Estado 
brasileiro é de fazer inveja ao mais racista entre os policiais de 
Baltimore, nos Estados Unidos, onde uma onda de rebeliões 
negras em 2015 tem denunciado a covardia dos agentes 
públicos, matando e torturando cidadãos afrodescendentes 
como se nem humanos fossem. 

Pois a PM de São Paulo matou 10.152 pessoas entre julho de 
1995 e abril de 2014. Entre 2008 e 2012, foram 9,5 vezes mais do 
que todas as polícias dos Estados Unidos. Enquanto os Estados 
Unidos registraram 0,63 morte a cada 100 mil habitantes, em 
São Paulo o índice foi de 5,87 no mesmo período. 

A maioria era de moradores das periferias pobres, negros ou 
pardos. Apesar disso, enquanto os Estados Unidos assistem a 
um processo de indignação e protestos pelas mortes decorrentes 
de ação policial, inclusive com homenagens a todos os negros 
mortos pela polícia nos últimos meses (Michael Brown, Tamir 
Rice e Eric Garner, entre outros), no Brasil opera-se uma espécie 
de anestesia da sensibilidade social, da qual só agora 
começamos a sair. 

Como aconteceu essa dessensibilização, a ponto de nenhum 
horror terem causado as mortes de 505 civis em um único estado 
da Federação em apenas dez dias? 

Como se desligaram os sensores humanos da tragédia social, 
quando milhares de pessoas são vítimas de um Estado 
ultraviolento e intrinsecamente racista? 

Um dos mecanismos opera pelo registro da invisibilidade do 
outro, dos outros, dos que não moram em Higienópolis, nos 
Jardins, no Leblon ou em Ipanema. A tragédia do filho morto no 
Capão Redondo ou no Alemão vira registro. Em Ipanema ou nos 
Jardins, é matéria de capa. A invisibilidade da realidade da 
periferia é parte do mecanismo que permite a supressão de 
direitos. 

Só reivindica direitos quem é visível no campo do debate 
democrático. Tornar invisíveis os problemas vividos pelos 
moradores da periferia é uma forma de eludir suas 
reivindicações. 

Explica-se: quando foi assassinado pela polícia o publicitário 
Ricardo Prudente de Aquino, em julho de 2012, depois de 
ultrapassar uma barreira policial em Alto de Pinheiros, um dos 
bairros mais ricos de São Paulo, fizeram-se manifestações e 
protestos, amigos vestidos de branco, rosas nas mãos, missa 
na igreja Nossa Senhora do Brasil – a mesma dos casamentos 
da elite paulistana. Repórteres de toda a imprensa presentes. 

Ricardo era uma exceção branca num monte de cadáveres 
negros e pobres. No mesmo mês, a polícia matara um jovem 
segurança morador do fundão da Zona Sul da cidade. 
A justificativa foi tê-lo confundido com um bandido. 

Como aconteceu no bairro rico, mãe, pai, amigos e colegas de 
trabalho desfilaram pelas ruas da periferia, com camisetas 
brancas e rosas nas mãos. Mas a mãe já sabia: “Protesto por 
assassinato de pobre não aparece no jornal”. Não apareceu 
mesmo. Foi noticiado apenas como “registro”, ou nota curta, 
sem foto. 

Em certo sentido, isso se deve ao paroquialismo dos jornais, 
com jornalistas cobrindo preferencialmente suas vizinhanças, 
seu próprio espaço vital, onde circulam seus amigos e seus 
familiares. É também porque os bairros ricos e de classe média 
concentram o leitorado dos jornais, a clientela direta. Por fim, 
tem a ver com a adesão ao projeto político tucano, que 
hegemoniza a política paulista há vinte anos. O governador 
do estado é o chefe da Secretaria de Segurança Pública. 

Outro mecanismo acontece pela manipulação da narrativa. 
O assassinato de um jovem trabalhador pela polícia é 
apresentado como “confronto”. A vítima, criminalizada, é 
invariavelmente acusada de ser traficante, de ter resistido à 
prisão, de estar armada, versão que a mídia tradicional 
retransmite docilmente e, na maioria dos casos, sem checar.

É uma covardia. Dotada de imensa assessoria de imprensa, a 
Polícia Militar e a Secretaria de Segurança Pública fabricam
suas “verdades” contra famílias pobres, desassistidas e
desesperadas  pela dor e pelo medo, muitas vezes ameaçadas
caso ousem falar. 

Uma das maiores violências cometidas contra a família dos 
jovens assassinados pela Polícia Militar e contra a própria 
memória das vítimas reside em sua criminalização póstuma. 
Já entrevistei dezenas de pais e mães de vítimas como forma de 
documentar a violência policial, e a primeira coisa que a maioria 
deles faz é apresentar a carteira de trabalho do filho morto. Uma 
dessas mães mostrou-me a carta de condolências que o gerente 
da loja McDonald’s em que o filho trabalhava mandou-lhe depois 
do assassinato do menino por dois policiais militares fora de 
serviço. A carta dizia que o jovem era um funcionário exemplar. 

No enterro do jovem, colegas de escola e de emprego fizeram 
questão de estar presentes, em solidariedade. Para a poderosa 
assessoria de imprensa da polícia, entretanto, ele era apenas um 
ladrão. Nos jornais, a autoridade policial apareceu dizendo que 
o rapaz havia assaltado um supermercado e depois resistido – 
armado – à ordem de prisão. Estava “justificada” a morte. 

A mãe “foi procurada, mas não foi encontrada” figura, como 
sempre, a justificativa para a falta do chamado “outro lado”. 
E o menino virou bandido, algo que lança o estigma do crime 
sobre a memória dele e sobre toda a sua família. 

Outro recurso narrativo a favorecer a culpabilização da vítima 
consiste na extração do jovem morto de qualquer contexto 
afetivo, familiar, de vizinhança. 

O resultado do processo é ele ser reduzido à condição de 
“bandido absoluto”. Na maior parte das vezes, nem nome o 
morto possui nos registros dos jornais. 

O caso do pedreiro Amarildo é exemplar da atuação desse 
mecanismo, usado no piloto automático pela mídia tradicional. 
Ao mesmo tempo, trata-se de um marco a mostrar a potência das 
contranarrativas geradas nas redes sociais por comunidades e 
movimentos por direitos humanos. 

O pedreiro Amarildo foi preso, torturado e morto pela Polícia 
Militar do Rio de Janeiro no dia 14 de julho de 2013. Os jornais 
tradicionais, fiéis às assessorias de imprensa da polícia, 
apressaram-se em veicular a versão de que ele seria um 
traficante ou um prototraficante e que seu desaparecimento 
decorreria de acertos entre bandidos. 

Foi graças à troca de mensagens, torpedos e à campanha “Onde 
está o Amarildo?”, iniciada nas redes sociais, especialmente no 
Facebook, com o apoio de movimentos como o Mães de Maio (da 
inconveniente Débora) e da Rede de Comunidades e Movimentos 
contra a Violência, que Amarildo tornou-se pedreiro e resgatou, 
post mortem, sua humanidade. 

Assim, descobriu-se que ele, que tinha o apelido de “Boi”, era 
casado com a dona de casa Elizabeth Gomes da Silva e pai de 
seis filhos, com quem dividia um barraco de um único cômodo. 

Os jornais tradicionais – sob o risco da desmoralização – foram 
obrigados a ir atrás da verdadeira história do pedreiro 
assassinado. 

Por fim, linha auxiliar importantíssima na manipulação, na 
justificação e no incentivo da violência policial, estão os 
programas sensacionalistas vespertinos, que têm entre suas 
maiores estrelas os apresentadores Marcelo Rezende e José 
Luiz Datena. [artigo esqcrito em 2015]

Segundo o tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de 
São Paulo Adilson Paes de Souza, esses programas enaltecem 
a associação de “truculência e arbitrariedade policial com o 
exercício de autoridade”. Segundo ele, alimentam ainda mais 
essa violência porque são consumidos avidamente nos quartéis. 

“O efeito terapêutico dessas falas nos policiais militares é 
terrível”, moldando sua ação violenta e justificando-a.

Hoje, o Brasil começa a mostrar a potência das contranarrativas 
feitas em rede e, como acontece nos Estados Unidos, 
multiplicam-se os registros em vídeo das violências cometidas 
por PMs, os quais viralizam pela internet; temos vítimas com 
nome e sobrenome, com história, com família, com luto, com 
carteira de trabalho. 

Temos vítimas que são objeto de saudades. Graças à ativa 
entrada dos pobres nas redes sociais, começam a ser 
desmontadas as mentiras veiculadas pelas assessorias de 
imprensa das polícias em conluio com uma imprensa 
desqualificada e adepta de soluções fáceis e apurações 
“por telefone”. 

Esse é o caminho e o legado deixados pelas tantas mortes de 
Amarildos, Cláudias, Douglas, Eduardos de Jesus. “Nossos 
mortos têm voz”, dizem as Mães de Maio. Cada vez mais." 
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(in "Bala perdida", org. B. Kucinski, 2015)

Abraço do tesco. 

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