Minhas leituras frequentemente descambam para coisas
inusitadas. E, normalmente, escritos mais antigos, porque
ostentam a palavra mágica: Grátis!
Assim, comecei a ler uma coletânea, organizada por José
António Gomes, de contos tradicionais portugueses, intitulada
"Fiz das pernas coração", mais voltada para o público infantil,
porém, como reúne histórias transmitidas oralmente, torna-se
ponto de interesse geral.
Os contos tradicionais, geralmente, tentam contar a 'esperteza'
de um 'heroi', que representa o povo mais pobre, em resposta
à opressão do poder dominante, nesse conto representada pela
classe eclesiástica que, em toda a Idade Média, não desgruda
do poder temporal.
UM CRIADO ESPERTO
"Havia um sujeito que era padre e que tinha por costume não
pagar as soldadas do criado, valendo-se de uma esperteza
no acto do ajuste. Certo dia bateu-lhe à porta um rapaz e
perguntou-lhe se queria assoldadar um criado.
- Quanto queres ganhar?
- Seis moedas por ano.
- Pago-te cinco réis, mas com a condição de fazeres só o
que te mando.
- Estou pelo contrato - respondeu o rapaz.
No dia seguinte entrou o criado ao serviço do amo, que
o mandou varrer a rua.
O rapaz varreu a rua e deixou o estrume em monte.
- Por que não apanhaste o estrume?
- Porque o patrão só me mandou varrer a rua.
Percebeu o amo que tinha ao seu serviço um criado fino.
Tentou durante muito tempo apanhar o rapaz em alguma
falta, e não lhe era possível.
Conferenciou o amo com um compadre muito esperto,
e este disse-lhe:
- Diga amanhã ao seu criado que lhe arranje um almoço
muito leve, e seja qual for o almoço diga-lhe que é pesado.
E assim sucedeu. O criado pôs-se a pensar na malícia do
patrão e na maneira como se havia de sair. Depois de
matutar algum tempo, veio pousar-lhe perto um pintassilgo.
Apanhou-o vivo, meteu-o numa terrina, tapou-a com a tampa
e esperou pelo patrão.
Este entrou e pediu o almoço.
- Está dentro dessa terrina.
- Pois tu não sabes que as sopas são alimento muito pesado
para mim?
- Veja bem: não são sopas.
O amo levantou a terrina, e o pintassilgo safou-se, voando.
- Parece-me que não podia arranjar-lhe um almoço mais
leve - disse o criado.
O amo calou-se e foi conferenciar com o compadre.
- Manda amanhã comprar dez réis de arres e dez réis de ais.
E assim sucedeu.
O criado pensou por algum tempo e disse consigo: achei.
Foi ao campo com um saco, e meteu-lhe dentro grande porção
de urtigas; depois comprou dez réis de laranjas e meteu dentro
grandes porções de alfinetes com as pontas para fora,
colocando as laranjas por baixo das urtigas.
Trouxe o saco para casa e disse ao amo:
- Aqui tem no saco o que me mandou comprar.
O amo abriu o saco e meteu dentro a mão.
- Arre! - gritou o patrão, sentindo-se picado nas urtigas.
- Os ais estão mais abaixo.
- Ai!, Ai! - disse o patrão desesperado, picando-se nos alfinetes.
- Já vê que cumpri as suas ordens.
Tornou o amo a casa do compadre. Este já não sabia que
conselho dar-lhe. Pensou, pensou e disse:
- Diga-lhe que é costume da casa jejuar-se três dias seguidos.
É impossível que ele resista a tão grande jejum. E nesta
hipótese ele safa-se, e o compadre vê-se livre dele.
O patrão veio para casa e disse:
- É costume da casa jejuar-se três dias seguidos;
eu também jejuo.
- Ora - respondeu o criado - na casa do último patrão jejuei
seis dias, e não me custou o jejum.
O criado preveniu-se com uma ceira de figos secos, que
o amo reservava para o mês de Maio, e comia os figos,
quando o amo não estava em casa.
Ao segundo dia ordenou-lhe o amo que aparelhasse duas
cavalgaduras para ambos irem a uma feira.
O criado aparelhou-as e meteu no forro da albarda da
sua cavalgadura uma boa porção de figos. Ora o amo,
como já se disse, era padre e ia à feira para dizer missa
numa capela rural.
Pelo caminho tiveram de atravessar uma grande porção
de mato, feito de estevas. O amo ia adiante e o criado atrás.
Este ia comendo o seu figo, à sorrelfa.
O amo, repentinamente, voltou os olhos para trás e viu o
criado a comer.
- Perdeste, pois que não jejuaste - gritou ele.
- Não perdi, vou entretido em mastigar a carapinha das
estevas, que refrescam a língua.
O amo quis seguir o exemplo, mas estas são muito amargas
e ele pôs-se a saboreá-las com repugnância.
Chegaram a um outeiro, de onde se avistava ainda a casa
do padre; e este fez parar a cavalgadura, exclamando:
- Ai que me esqueceu a caixa das hóstias!...
- Se quer eu vou lá; ceda-me a sua mula que é mais ligeira
do que a minha e aqui estou num momento.
- Pois sim, não te esqueças. Diz à criada que é a caixa maior.
O criado montou na mula do patrão.
Chegou a casa e disse à criada:
- O patrão ordena que me entregue a bolsa maior
do dinheiro, que tem no baú.
- A maior não pode ser, porque é onde ele tem o dinheiro
para pagar a fazenda que comprou.
- Olhe, ele está além: pergunte-lhe.
A criada subiu à varanda do prédio e pôs-se a gritar:
- A maior ou a mais pequena?
- A maior, a maior - respondeu o padre.
A criada desceu e entregou a bolsa maior, que o criado
arrecadou. Depois nunca mais apareceu nem com o dinheiro
nem com a mula.
Vingara assim os outros criados que não tinham recebido
os seus salários."
(Recolha de Ataíde Oliveira, in Carlos de Oliveira e
José Gomes Ferreira, Contos Tradicionais Portugueses,
1º vol., Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1975, pp. 123-127.)
* * *
Aí, portanto, não vemos a esperteza corrosiva de uma classe
política, distorcendo as leis em seu favor, mas apenas respostas
a canalhices e safadezas, disfarçadas sob algum verniz de
honestidade ou mesmo de santidade.
São ações locais e pontuais, sem nenhuma amplitude em seu
efeito, mas que dão ao povo um sabor de vitória, o que quase
nunca consegue na vida real.
Abraço do tesco.
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5 comentários:
História com um final inusitado. Na verdade, sentimos um certo prazer quando vemos um espertinho se dar mal. E gostaríamos que todos os espertinhos do nosso país, que se apropria do dinheiro público, se dessem muito mal. Muita paz!
Esse criado é um sábio e faço minhas as palavras da Denise.
Um beijo, tesco!
gostei!!!!
com certeza quem preza pela justica, gostou do resultado pro patrao "esperto". der broccoli xP
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