Aproveitando o ensejo de colocar o livro no sortesco 254
(logo aí embaixo), transcrevo o que Zélia conta, de início,
sobre o papagaio Floro, sem dúvida, uma figura ímpar.
FLORO, PAPAGAIO DE PASSADO BOÊMIO
"De passagem pelo Rio, ao saber que eu costumava viajar de
trem para São Paulo — quando as saudades de meu filho
apertavam.
— James me pediu que lhe trouxesse alguns pertences que
deixara lá ao fazer a mudança para a Bahia.
Ouvindo a conversa, Lalu perguntou:
— E por que tu não traz Floro também?
Floro era um papagaio que acompanhava Jorge havia anos.
Presente do pai, trazido de Itajuípe. Ao passar, certo dia, por
uma rua estreita da cidadezinha, o Coronel ouvira insultos e
assobios.
Parou, olhou para os lados, não havia ninguém. Ia continuar
seu caminho quando novos assobios, novos palavrões o
fizeram retroceder. Empoleirado na gaiola, na porta de uma
casa de mulheres da vida, um louro se divertia falando e
assobiando.
O Coronel jamais vira em sua vida papagaio tão falador.
"Quem vai gostar dele é Jorge", pensou.
Bateu palmas à porta da casa, chamando pelo dono da ave,
dono que, em realidade, era uma dona, gerente da pensão de
raparigas em cuja entrada encontrava-se a gaiola. Tendo
ouvido a proposta de compra, foi dizendo:
— É animal de estimação, xodó das meninas, vendo não!
Mas o Coronel era obstinado; decidira levar o papagaio para
o filho, não ia desistir assim na primeira recusa, não sendo
de seu feitio capitular sem luta. Meteu a mão no bolso,
retirando dele várias pelegas, "pra mais de 100 mil-réis, "uma
fortuna", explicava o Coronel.
Diante de argumento tão convincente, a dona entregou o
louro.
Para substituí-lo arranjaria outro, que em poucos dias
aprenderia, certamente, o vocabulário da casa; não faltavam
mestres competentes.
Papagaio viajado, Floro passara um ano em São Paulo
enquanto Jorge ali vivera.
Quando me mudei para o apartamento da Avenida São João,
a princípio o louro me estranhou; dava-me carreirões —
penas eriçadas, bico aberto ameaçador, asa baixa rastejando
o chão — a ponto de obrigar-me, um dia, a procurar refúgio
sobre a mesa da sala. Jorge e Lila, que assistiam à cena,
quase morrem de tanto rir. Com seu dono, Floro — fora o
nome que Lalu lhe dera — era uma doçura. Permitia-lhe
todas as intimidades; até mesmo que o virasse de costas e
lhe cocasse a barriga, a ponto de eu pensar que Floro não
devia ser macho e sim fêmea...
Procurei por todos os meios conquistar-lhe a amizade, a
confiança: puxava conversa com ele, oferecia-lhe pedaços
de coco, roletes de cana, coisas que papagaio adora... Ele
aceitava as guloseimas mas continuava a me insultar,
ameaçador.
Foi a música, a bem dizer, foi um tango argentino que, por
puro acaso, me fez conquistar as graças do louro. Um dia,
passei por Floro, que dormia em seu poleiro, cantarolando
um tango:
"La vi esta madrugada salir de un cabaré..." Floro despertou
alvoroçado: com sua voz esganiçada e estridente, pôs-se a
repetir, sem parar, a palavra mágica que o acordara e tanto o
entusiasmara: "cabaré... cabaré... cabaré...". Recordações do
passado boêmio, sem dúvida.
Depois desse dia, coincidência ou não, Floro tornou-se meu
amigo."
(Zélia Gattai, "Um chapéu para viagem").
Um livro admirável, que tem o sabor de "quero mais".
Abraço do tesco.
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Um comentário:
Perdemos um tempão sem ler as delícias da Zélia que foi uma escritora maravilhosa. Tenho todos os livros.
Beijotescas
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